Inferno: esse lugar existe?
Perguntei ao Ubersuggest quantas pessoas estão buscando pela palavra inferno no Google. A resposta me surpreendeu. São mais de 40 mil pesquisas sobre essa palavra nos últimos meses.
Então resolvi produzir um texto para falar sobre o inferno, pois a cada dia que passa, percebo como é grande a fascinação da teologia cristã em usar o medo para controlar as pessoas.
E, se não pudesse piorar, o Brasil vive um momento onde a igreja evangélica se aliou à política. Nisso, o medo tornou-se o carro-chefe tanto de um conceito quanto do outro.
Medo do comunismo, medo das minorias, medo de perder status. Todos os tipos de medos que, segundo a mensagem do próprio Cristo, deveriam ser vencidos e superados pelo amor.
São tempos sombrios. Estou escrevendo isso em 2022, mas às vezes tenho a impressão de que estamos revivendo a Idade Média, tamanho a proporção dos discursos moralistas que ouvimos.
Portanto, resolvi escrever sobre o medo que dá base para essa teologia pautada numa relação de causa-consequência, da qual todos nós fomos doutrinados. E que medo é esse? Medo de ir para o inferno.
O que é o inferno?
Se você é cristão já deve ter ouvido que a palavra latina inferno no texto bíblico é sheol, no hebraico e hades, no grego.
Em uma tradução literal e sincera, sheol quer dizer sepultura e Hades é o deus grego responsável por não deixar os mortos voltarem ao mundo dos vivos.
Ou seja, as palavras originais não nos explicam muita coisa e se você buscar no Google o que é o inferno, a resposta será:
- para mitologia é um lugar subterrâneo onde os mortos habitam;
- para a teologia é o lugar para onde as almas pecadoras vão a fim de sofrer penas e torturas eternas.
Eu não sei você, mas eu acho essa definição teológica do inferno bem pesada! Ficar eternamente sofrendo? Parece bem ruim. Não acha?
E, de fato, a razão de se definir o inferno como um lugar de penitência eterna era para assustar mesmo. Pois, causar medo nas pessoas é o jeito mais fácil de controlá-las.
Por isso, a teologia cristã acaba pautando-se em uma relação de causa-consequência: obedeça e vá para o céu, desobedeça e vá para o inferno.
Mas, será que isso não é simplificar demais um tema que, ao que tudo indica, é eterno, ou seja, não tem nem começo e nem fim? É sempre.
E eis aí nossa primeira dificuldade, pois, se o inferno é eterno, logo, eu e você já não estaríamos vivendo nele antes mesmo de nascer e ficarmos presos no tempo?
Pois bem, então, vamos tentar problematizar um pouco mais isso? Que tal deixar de lado nossos absolutismos e nos abrirmos para uma reflexão sincera sobre tal dogma cristão, que é tão pouco falado, por sinal?
Quem inventou o inferno?
Antes de mais nada, é fundamental reconhecer que o cristianismo sofreu influências diretas do platonismo e das religiões gregas como o mitraísmo (adoradores de Mitra), por exemplo.
Se você achava que só o judaísmo formou o cristianismo, sinto em lhe informar que esse é um ledo enganoso. A filosofia grega está presente em quase todo o texto neotestamentário.
Tenho até um artigo publicado em uma revista acadêmica de Teologia que explica um pouco sobre como as escolas gregas de pensamento influenciaram a construção do cristianismo.
Pois bem, vamos ao ponto.
Em Platão (427-347 a.C.), o mito da Caverna já revela a existência de um ser espiritual perfeito e imortal do “Mundo das Ideias”, que se encarna e aprisiona-se num corpo mortal do “mundo das trevas”.
Esse dualismo do ser humano: alma e corpo, mundo das luzes e das trevas, bem e mal, é um construto da ideologia hindu-mitraista.
Os mitraistas (gregos) adotaram a crença hindu de que Shiva e Yama castigavam aqueles que chegavam ao submundo. Atribuíram, então, ao Hades e ao Tártaro a prerrogativa de castigadores eternos.
Com a conquista romana, os deuses correspondentes tornaram-se Vulcano e Plutão. Todos com a mesma função: castigar/administrar os mortos eternamente.
No período chamado helênico, liderado por Alexandre o grande (330 a.C), a aculturação entre romanos e gregos fez com que o mitraísmo ficasse cada vez mais forte.
A expansão do império romano até o que chamamos hoje de Oriente Médio, fez com que o contexto judaico que Jesus vivenciou ficasse marcado pelo mitraismo como a religião mais relevante do período.
O pensamento dualista oriundo da filosofia platônica era adotado tanto pelos imperadores, quanto pelos legisladores romanos, que eram em sua maioria mitraístas e adoradores do deus Sol, Azera e Mazda.
Inclusive, domingo é o dia do deus Sol e 25 de dezembro é o dia de nascimento de Mitra, que também é nascido de uma virgem. Pois é! Se você ainda tinha dúvidas da influência helênica no cristianismo, tente dormir com essa!
Compreendido que o cristianismo foi construído sob a influência grega, fica mais fácil compreender os textos de Santo Agostinho: “Confissões” e “Cidade de Deus”, nos quais ele é influenciado por Porfírio, discípulo de Platão.
Agostinho, então, apresenta a ideia de uma condição dualista do ser humano: corpo e alma. Na alma a concepção do pecado e no corpo a concretização. Ao findar o corpo, sobraria a alma para pagar eternamente pelos pecados cometidos durante a vida.
E onde a alma pagaria pelos pecados cometidos pelo corpo em vida? Acertou. No inferno.
Foi esse pensamento de Agostinho que serviu de base para a venda das indulgências na Idade Média. Afinal, a ideia era de que ao comprar determinados objetos, as pessoas mortas estariam sendo libertas das duras penas do inferno aplicadas por Shiva, Yanna, Hades, Mitra, Vulcano, Plutão ou Lúcifer. Você pode escolher. Tanto faz. (contém ironia).
O Inferno de Dante
O pensamento de Agostinho influenciou Tomás de Aquino (1225-1274), um dos poucos teólogos chamados pais da igreja, que tentou tratar da ideia do Problema do Mal. (dilema bem difícil para teologia cristã, inclusive)
Aqui tem um texto interessante sobre este assunto (caso você queira se aprofundar).
Mas, foi Dante Alighieri (1261 – 1321), um escritor italiano que conseguiu ilustrar a ideia do Inferno como até hoje é “pintada” nas pregações que nós ouvimos nos púlpitos das igrejas cristãs.
E, já que a teologia cristã havia se apropriado da cultura hindu, grega, helenística e romana da existência de um lugar chamado inferno, Dante, em sua obra “A Divina Comédia“, resolveu desenhar em forma de poema esse lugar assombroso e assustador.
Dante reúne quase todos os conceitos religiosos (desde o hindu-mitraista, passando pelo helênico, até chegar ao cristão) a fim de apresentar o inferno em forma de 9 círculos, com vários vales.
Se quiser conhecer de forma resumida cada um desses “estágios” esse texto, da Christine Alencar, é bem didático e instrutivo.
Mas calma, o papa Francisco revisou a ideia de inferno em 2015. E, antes disso, o papa Ratzinger já tinha destituído o Limbo (o primeiro círculo do inferno de Dante: para onde vão aqueles que não conheceram o evangelho e não foram batizados: bebês, pessoas que viveram antes de Jesus e os pagãos de bom caráter).
Agora você deve estar se perguntando como é possível um “lugar” que é etéreo (sobrenatural) ser criado, instituído e ter partes destituídas por pessoas que estão vivas?
Pois é. Eu também me pergunto isso.
A reflexão que isso me leva é uma só: controle. Afinal, criar um lugar para enviar pessoas que “desobedecem” é uma ideia genial para controlar a sociedade e a massa.
Inclusive, foi o inferno de Dante que sensibilizou as pessoas na Idade Média a comprarem indulgências para libertar seus parentes e entes queridos das mazelas eternas do inferno.
E olha só que interessante!
Um dos vales no inferno de Dante é destinado para os que praticam a Simonia (a venda do favor de Deus). Simonia vem de Simão, o mago. Lembra dele? O cara que queria comprar de Pedro a habilidade de fazer milagres, lá no livro de Atos, lembrou?
Simonia é o termo teológico para conceituar e criminalizar a venda de indulgências. Mas, isso só veio depois que a Igreja reconheceu que essa era uma prática imoral.
Porém, o discurso baseado no medo do inferno continua até hoje em nossos púlpitos. Inclusive, se desconstruirmos a ideia dantesca do inferno, alguns pastores ficarão sem tema para suas mensagens.
É essa concepção dualista e dantesca que leva pessoas a criarem narrativas de que até mesmo na política existe uma luta do bem contra o mal, uma guerra entre os que vão para o céu contra os que vão para o inferno, um tal exército do bem contro o exército do mal.
O que Jesus fala sobre o inferno?
Em Mateus 10.23, Lucas 10.15 já é possível ver o dualismo que me referi antes: “E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo”.
Neste episódio Jesus está comissionando os discípulos. Ele se refere aos que iriam perseguir os discípulos por conta da expansão do cristianismo.
Jesus antecipa aos discípulos que sua mensagem não traria paz para as famílias, pois, a contradição religiosa seria um ponto muito crucial na cultura da época. E, ainda é até hoje.
Contudo, a interpretação mais óbvia é que Jesus estaria falando do mesmo inferno hindu-mitraista. Mas, me atrevo a dizer que Jesus está alertando os discípulos de que experimentariam o inferno durante suas vidas mesmo. Pois, viveriam cotidianamente próximos da morte. E, talvez, por isso, ele já alerta que quem quiser segui-lo, precisa “tomar sua própria cruz” e carregar.
Já em Mateus 18.9 e em Marcos 9.45-47, está registrada a famosa perícope sobre arrancar olho, mão, pé e afins porque é melhor entrar no céu amputado, do que ir com todos os membros para o inferno.
Nesse episódio, Jesus está instruído aos seus discípulos que olhem para os “pequeninos”, não apenas crianças, mas todos os necessitados, os marginalizados na sociedade.
Jesus diz para olharem para os que já vivem infernizados, seja pela pobreza, pela fome ou por algum espírito maligno, como a desigualdade social, por exemplo.
Portanto, a instrução aqui é para que os discípulos usem seus corpos e suas habilidades para atenderem os que precisam. A instrução é que não desperdicem suas energias com o que não importa, afinal lá no céu ou lá no inferno não haverá mais nada o que ser feito.
Observação que nos leva ao próximo versículo. A parábola do homem rico e de seu mordomo, registrada em Lucas 16.
“E no inferno, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio” (Lucas 16.23).
Esse é um dos textos do evangelho em que a concepção hindu-mitraista e helênica é mais visível. Há um abismo entre o céu e o inferno e, ainda que ambos se vêem, não é possível que se toquem.
Porém, quero te lembrar que essa é uma parábola. Ou seja, uma ferramenta (figura) de linguagem para explicar algo factível da realidade. Isto é, o fato de que nós não temos contato com os mortos e nem eles conosco.
À exceção da chave da crença (das religiões que acreditam que isso seja possível, como o espiritismo). Mas, essa não é a discussão. O factível e racional é que nós naturalmente não interagimos com os mortos.
E como toda parábola, o objetivo aqui é trazer uma lição. E o que Jesus ensina faz eco com o que falei anteriormente: olhe para os que sofrem.
Enquanto vivo, o homem rico usufrui de todos os seus privilégios ignorando a existência do mendigo cheio de doenças. Do outro lado, a condição se inverteu, e o homem rico nem sequer pode ser atendido.
Jesus ensina que na vida os padrões podem se inverter e que nossa falta de sensibilidade pode nos causar um inferno em que ninguém poderá nos ajudar.
Por fim, Mateus 16.18 “Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.
Aqui cabe uma ótima reflexão para nós como Igreja. As portas do inferno não prevalecerão, não tem nada a ver com uma guerra espiritual.
Essa concepção bélica de hermenêutica (interpretação) bíblica é oriunda de um período repleto de guerras. Vamos aplicar uma outra chave aqui?
Que tal olharmos para o contexto e lembrarmos que essa resposta de Jesus vem depois de Pedro reconhecer que ele é o Cristo de Deus, ou seja o ungido para nos ensinar a viver em amor.
E agora Pedro, e todos os outros, sabem que se nos amarmos uns aos outros como Jesus nos amou, ninguém vai experimentar o sofrimento, nem vivo, nem morto. Não há o que temer. Pois o inferno não vai prevalecer sobre ninguém.
O que é o inferno?
O inferno pode até ser um lugar. Mas, antes disso, o inferno é um estado de espírito. É uma situação de sofrimento. O inferno acontece agora.
Quantas pessoas à sua volta sofrem constantemente? Quantas vivem escondidas em seus próprios infernos? Que não tem a ver com pecados, mas com condições que a própria vida lhes impôs.
Independentemente da sua crença, ou da sua não crença, a verdade é que sofremos. Fazemos escolhas erradas. Convivemos com pessoas que nos maltratam emocionalmente ou fisicamente. Somos colocados em situações que não gostaríamos de estar.
A vida pode ser um verdadeiro inferno. A sua vida pode estar sendo um inferno agora. E aí tanto faz, a morte será só uma passagem, talvez nada mude. O sofrimento vai continuar eternamente, seja lá onde for.
Portanto, mais do que um lugar para onde pessoas temem ir por desobediência moral, o inferno tem muito mais a ver com a condição na qual todos estamos sujeitos a viver.
E o que nós como Igreja podemos fazer para resgatar pessoas dos seus sofrimentos reais e imediatos? Será mesmo que estamos superando as portas do inferno?
Ou só estamos sendo insensíveis e preocupados em condenar todos os que pensam e se comportam diferente de nós? Será que nosso desejo não é só ter um lugar para enviá-los distante de nós? Será que já não fazemos isso agora, quando afastamos as pessoas de nossos templos?
O raciocínio que faço sobre o inferno vale também para o céu. É possível viver o céu aqui e agora. Afinal, de acordo com Jesus: o reino de Deus é chegado. E isso não tem nada a ver com obediência/desobediência.
O reino de Deus tem a ver com amor, aceitação e cumplicidade. Jesus nos convida a sentar à mesa com ele, independentemente dos nossos pecados.
E se o céu e o inferno realmente forem lugares pós-morte, somente Deus poderá decidir quem vai e quem não vai pra lá. A gente tem que parar de usurpar o papel de juiz divino. E aprender a nos amarmos uns aos outros.